Recortes de uma biografia
Infância
Toola, a mãe, Emilio, Maria Mercedes, Carlos, Jack, Maria Rosa e René

Emilio foi um menino especialmente amado por sua mãe, é o que ele nos diz. E não podemos esquecer que, para Freud, aí reside a possibilidade de sucesso na vida.

Infância “dourada”; filho mais moço de uma família rica, adorado pela mãe, mimado pelos seis irmãos bem mais velhos, com motorista para levá-lo ao futebol e menu impresso em jantares especiais. Um papai de 50 anos, carinhoso e solícito, que o acompanhava ao zoológico. Talvez mais avô do que pai, já que o irmão Jack ocupava muitas vezes o lugar de pai. Língua materna o espanhol, língua paterna o francês.

Descreve-se, entretanto, como uma criança silenciosa, pura, maravilhosa, um tanto socrática e algo sinistra. Tangenciava o autismo, segundo ele próprio diagnostica. “[...] Infancia sin calle, sin potrero, mi infância vista a través de la ventana del Buick.”

Marita Schuchard Rodrigué, a mãe René Rodrigué, o pai e o tio.
Adolescência

Adolescência difícil, em que se descobre um púbere feio. Não mais o olhar amoroso de uma mãe e de um pai, acompanhado dos olhares encantados de seis irmãos, também um tanto pais e mães. Um véu cai ao contemplar-se no espelho, e descobre não mais um Emilito lindo, mas um Emilio horrível; “Me veía horrible en el espejo”. Refere-se a este momento como sendo o momento em que deixa de ser autista e é surpreendido por uma metamoforse. E, diz: “[...]sentir-se feo afecta [...] los delirios respaldados por una cierta realidade son los peores”. Os colegas chamavam-lhe “mono” provocando-lhe a reclusão em sala de aula, mesmo nos momentos de lazer.

Primeiro encontro com Freud

Soube de Freud através do pai, que mostrou-se leitor fervoroso, e transmitia ao filho, em largas conversas no almoço a dois, das quintas-feiras, as idéias principais do gênio vienense. A leitura do livro de Stekel, La mujer frígida, acabou por inocular o vírus da psicanálise.

O interesse pela medicina surgiu, apesar de que, pela metade do caminho, desejou tudo abandonar para dedicar-se a pastorear ovelhas na Patagônia.

Rodrigué, em Londres
Encontro com Klein

Emilio foi menino de ouro do kleinismo. Quanto a isto, não existem dúvidas. Iniciou sua análise com Arnaldo Rascovsky, em 1943, um dos analistas mais prestigiado da Asociación Psicoanalítica Argentina – APA; “Fue una aventura: en la segunda sesión me tumbó en el diván y el increíble mundo del psicoanálisis se abrió ante mis ojos.”

Não foi, entretanto, o que poderíamos chamar um analisante dócil. A leitura apaixonada de Klein e, particularmente, de Fairbain, tornou-o um participante destacado nos seminários didáticos e crítico audaz das intervenções de seu analista que, exasperado pelos comentários, lança-lhe uma intervenção inesperada: “Rodrigué, si no te gusta, jodete”. Este incidente retirou-lhe a possibilidade de continuar a didática em Buenos Aires e ele parte para Londres.

Londres

Londres abre-se para o jovem analista, recém-casado com Beatriz, mulher linda, alegre, esplendorosa nos seus 18 anos, como ele mesmo comenta. Uma mesada de 300 dólares, dada pelo pai e muito entusiasmo pela psicanálise foram suficientes para alimentar um período de grande enriquecimento intelectual.

É importante lembrar os grandes companheiros de estudos e seminários que teve: Masud Kahn, considerado por ele com um dos tipos mais inteligentes que conheceu; Ernest Jones, Bion, Rickman, Winnicott, Balint, Glover, Elliot Jacques, Joan Rivière, Marion Milner, Strachey, Hana Segall e muitos outros, destacando, especialmente Melanie Klein e Anna Freud.

Londres, contudo, não lhe deu apenas a psicanálise; ele logo percebeu que seus colegas traziam uma bagagem intelectual a alguma distância da sua. Assim, seu tempo livre foi recheado com muita leitura, visitas semanais à National Gallery, música e teatro. Tudo o que, em verdade, um psicanalista necessita ter: uma ampla cultura.

Rodrigué e companheiros de Seminários, Londres
Grupos terapêuticos

Emilio, que havia presenciado o funcionamento de grupos na Inglaterra, de início duvidou que pudessem ter êxito no continente americano; estava, contudo, enganado. Assim, formou um primeiro grupo, que teve como observadores Marie Langer e Fontana, cujo êxito o impulsionou para uma segunda experiência, desta vez tendo como observadores Arnaldo Rascovsky e León Grinberg. Outros o seguiram e acabaram por fundar uma Associação Psicanalítica de Grupos. Desta experiência, surgiu o livro, Psicoterapia de grupo escrito conjuntamente com Langer e Grinberg, e que continua sendo um clássico sobre o tema.

Rodrigué e Marie Langer, Buenos Aires
O “caso Raúl”

Análise de um esquizofrênico, com mutismo, de três anos de idade. Klein completava 70 anos e um livro seria editado como parte das comemorações. A Emilio foi, então, pedido um artigo, que faria parte da coletânea Novas tendências na psicanálise. Ele escolheu este pequeno paciente, que atendia no consultório de Arminda Aberastury, de paletó e gravata, e supervisionando com Enrique Pichon-Rivière, a quem considera ter sido um verdadeiro mestre, pois não tinha preocupações em ter discípulos. É muito provável que uma sintonia com o menino autista, que identificava em si, tornou-o especialmente sensível para atender Raul, e escrever um clássico sobre o autismo precoce infantil. Foram muitas horas frente a uma página em branco e oito meses para concluir o texto.

Foi na pesquisa bibliográfica para o trabalho sobre Raul, na leitura do artigo de Marion Milner, “O papel da ilusão na formação simbólica”,que fez a descoberta intelectual, marcante para a sua vida: Susanne Langer. Fascinado pela leitura de Filosofia em nova chave, não hesitou em escrever para a filósofa, solicitando um trabalho conjunto, e expressando o desejo de tornar-se seu discípulo.

Austen Riggs

Parte para os Estados Unidos, aos trinta e cinco anos, com a mulher e três filhos, um ganho de residente e com o prestígio de já ser considerado didata na APA. Valeu-lhe a experiência em Londres, a freqüência à Tavistock Clinic.

Austen Riggs era uma clínica, uma comunidade terapêutica, financiada parcialmente pela Ford Foundation e um grupo de pais ricos. O trio que a dirigia era de primeira: Robert Knight, psicanalista proveniente de Topeka, Erik Erikson, analisado por Anna Freud, em Viena, autor de três importantes livros na área da antropologia, e, David Rappaport “ monstruo teórico que solo atendia a um paciente y el resto del dia estudiaba”.

Beatriz e os filhos: Paula, Belém e Marcos
Encontros com Susanne Langer

Às quintas-feiras ia ao encontro de Susanne Langer, que morava em Mystic, no estado de Connecticut, ao sul de Massachusetts. Era uma viagem de hora e meia. Langer morava em um chalé rústico de madeira, dentro de um bosque de pinheiros, isolada de vizinhos, sem rádio, televisão ou telefone. Uma casa forrada de livros, com grandes mesas de trabalho em volta de uma lareira. Aí trabalhavam e almoçavam. A rotina de Susanne, mulher de 70 anos, fascinava; nada menos de 16 horas diárias estudando e escrevendo. Havia sido uma menina autista, considerada retardada, que só aos 10 anos aprendera a escrever. Tornou-se escritora brilhante. Com ela, Emilio aprendeu lógica simbólica e tornou-se leitor de Cassirer. A cada encontro, ele fazia a leitura das 21 páginas que ela escrevia semanalmente, e comentava-as e discutia-as como um novo interlocutor. “Una cosa aprendí de Susanne Langer, que puede resumirse en la siguiente fórmula: “Será asi?”. Dudar de la palabra, aunque sea escrita. Aun que sea de libro.”

Susanne Langer
Biografia de uma comunidade terapêutica

Surge o projeto de escrever um livro sobre a própria Austen Riggs. Os arquivos lhe foram franqueados e a leitura dos preciosos relatórios o enriqueceram de uma maneira surpreendente. O mundo da loucura se tornou, para ele, mais transparente. Surgiu, então, o seu primeiro livro Biografia de una comunidad terapêutica, preciosidade para quem o possui. “Considero que tuve suerte en encontrarme en el lugar cierto a la hora cierta: Buenos Aires, 1947, Londres, 1952 y ahora en Stockbridge, y repetiría lo dicho por Stekel sobre las Reuniones de los Miércoles: “Chispas saltaban de nuestras mentes y cada noche nos aguardaba una revelación”.

Deixar Stockbridge

Deixar Stockbridge não foi uma decisão fácil. O lugar deixou-lhe na memória o período de maior felicidade familiar. Casa linda, filhos crescendo, uma pequena horta que transformava a mesa em um sabor especial, enfim, uma harmonia que poderia ter aprisionado a muitos. Durante algum tempo, foi convidado, por Austen Riggs para comparecer, anualmente, ao Congresso Psicanalítico de New York.

Uma nova era : El contexto del processo analítico

Teve início uma nova era. A separação de Beatriz e a paixão por Noune. Noune é descrita como a mulher mais geisha que ele conheceu, uma verdadeira Madame Butterfly. Proprietária de uma casa de campo na Argentina, “La Escobita”, lugar encantado que mais parecia um “conto de fadas”; de um maravilhoso apartamento em Paris, às margens do Sena e com vistas à Notre Dame, e ainda uma casa aos pés dos Pirineus. Ambos psicanalistas, por aquelas alturas ganhando bem, não é difícil deduzir que viveram anos prósperos e luxuosos, divididos entre temporadas na Europa e na Argentina. Foi neste período, exatamente o ano de 1966, que Emilio se tornou presidente da APA. E, tempos depois, também lhe foi conferido o lugar de presidente da Federação Argentina de Psiquiatras -FAP.

Em parceria com Noune escreve El Contexto del proceso analitico , editado pela Paidós.

Tornar-se escritor

A decisão de tornar-se escritor, desejo que o acompanhava desde sempre, tomou força neste período. Tentou alguns contos, que lhe valeram a publicação de Plenipotência, porém sem grande sucesso. Surge, então, a idéia, quase obsessão, de ampliar um dos contos e transformá-lo em novela. Nasce, então, Heroína. E sobre ela, Emilio afirma: “Esa novela se clava en la encrucijada de mi vida”.

A novela teve êxito total. As livrarias ostentavam o livro nas vitrines, para orgulho do autor que não se cansava de passear pela rua Corrientes, desfrutando, ao máximo, o prazer da vaidade. Não durou muito e o livro transformou-se em filme. Enfim, o sucesso estava selado. Emilio, aos 42 anos de idade, passou à categoria dos escritores.

Viagem a Moscou

Uma viagem oficial a Moscou foi programada. Emilio participou como Presidente da FAP. O grupo era composto de simpatizantes e não simpatizantes do comunismo. Ainda que com a passagem efêmera de apenas três horas como membro do Partido Comunista, esta viagem teve o mérito de selar importantes amizades e fazer germinar, mais intensamente, o movimento Plataforma, que já tinha dado os seus primeiros passos. Assim se reuniram Fernando Ulloa, Eduardo Pavlovsky (Tato), Armando Bauleo. “Rusia fue la hora de la amistad. [...] fue un laboratório social, lo sexual intensivo sobre la amistad y sus vicisitudes, sobre la pareja y la incipiente globalización de nuestras vidas. Un viaje más profético que sabático.”

A Casona

A Casona, casa alugada em Belgrano, sob a fiança de Ulloa, teve como projeto inicial reunir, debaixo do mesmo teto, Hernán Kesselman, Tato, Armando e Emilio. Este foi um período qualificado de “bravo”; rompimento com a APA, famílias e casamentos ameaçados, ruptura do cartão de membro do Jockey Club, que mantinha resquícios de aristocracia. Foi uma espécie de internamento, em que um refúgio terapêutico era procurado na amizade e no amor entre homens.Para Emilio, uma “debandada fóbica” impediu que o projeto prosperasse. Era um centro de boas discussões sobre política em geral, peronismo em particular, antipsiquiatria e espaço de laboratórios memoráveis.

Plataforma

Em 1969, Emilio foi eleito vice-presidente da Associação Psicanalítica Internacional, posto que lhe foi conferido pela sua condição de presidente da APA. A IPA realizava, então, o seu 26º Congresso tendo como tema Protesto e Revolução. A Europa havia sido convulsionada no ano anterior, 1968, pelo movimento estudantil nascido em Nanterres, com forte repercussão na América Latina.

Uma leitura ingênua da proposta do Congresso poderia caminhar no sentido de pensá-lo conforme os movimentos políticos e sociais nascidos na rebelião estudantil francesa, porém a rígida hierarquia institucional, presente na própria estrutura congressual, falava em outra direção, ou seja [...]“transparentaba la coherencia de la instrumentación política del pensamiento científico al servicio de la burguesia”[...].

Um grupo de psicanalistas europeus, jovens, denominado Plataforma Internacional, como resposta à ideologia do Congresso, convocou um contra-congresso cujo temário visava [...] “un intercambio cientifico comprometido con las luchas políticas” [...] O temário a ser discutido era:

a- A formação do psicanalista.
b- Os significados sociais da estrutura e as funções das sociedades psicanalíticas.
c- O papel social e a imagem social da psicanálise.
d- A relação entre os psicanalistas e suas instituições.

Este contra-congresso de Roma teve forte repercussão na Argentina, gerando a criação do Grupo Plataforma Argentino, fundado por 11 psicanalistas, na sua grande maioria jovens candidatos à APA. Foi uma noite de emoção, que teve como cenário o consultório de Marie Langer e muita champanhe para brindar. A ausência de José Bleger, que até então havia sido companheiro nesta luta, trouxe uma nota de tristeza. Para Emilio, os principais mentores do movimento foram Armando Bauleo e Hernán Kesselman, contando, ainda, com a presença de alguns didatas. Durante o ano de 1970, ano rico em acontecimentos político-sociais, o grupo esteve empenhado em realizar não só uma revisão teórica da psicanálise, mas também analisar as diferentes concepções que interatuavam no processo de produção científica.

O grupo Plataforma questionava a didática e a hierarquia dentro do espaço institucional, pontos que estavam no centro das questões de Jacques Lacan, na sua luta contra a IPA.

Emilio situa a sua aversão ao movimento lacaniano, nesta “usurpação” de princípios. Para ele, o psicanalista francês colheu os frutos que a Plataforma havia plantado.

Medo

Neste mesmo ano, uma onda repressiva espalhou-se pelo país e, não apenas a APA, mas também a FAP, tiveram, em muitos momentos, que tomar posições arriscadas. Emilio, então presidente da FAP, declara ter vivido momentos de medo intenso. Ele relata, especialmente, uma Assembléia que dirigia, cujo resultado seria imprevisível, no que se refere às perseguições. Muitos companheiros tornaram-se “desaparecidos”.

No dia 4 de novembro de 1971, todos os membros de Plataforma Argentina solicitaram o desligamento formal, tanto da APA como da IPA. Emilio confessa que, para ele, este desligamento não foi fácil, visto que, no fundo, considera-se “um conservador contrariado”.

Documento

Outro movimento denominado Documento, que contava, entre seus lideres, com a figura de Fernando Ulloa, também ganhou força neste período, ocasionando, igualmente, novas retiradas da APA.

Exílio

O ano 1972 marca o fim de uma época. Então, o nosso personagem diz ter se despedido do século, das expectativas das grandes mobilizações de massa, das conquistas do movimento francês de 1968, das modificações sociais. O país havia “enloquecido”, e o pavor era o acompanhante constante de todos. A única saída era o exílio. “Estábamos cada día más mustios e inapetentes. Ya no había más ganas de escribir, síntoma grave. Por las mañanas leíamos las crónicas de muertes solapadas, muertes cercanas por parecido o por oposición, muertes con mensaje, las más ensañadas de todas”.

Teoria da Jubilação

O grupo dispersou-se; alguns partiram para o México, outros para Madrid, Barcelona, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia.

A instituição psicanalítica foi abandonada, assim como a produção de trabalhos teóricos. A psicanálise, para ele, deixou de ser o centro de suas atenções, quando uma auto-permissão para desfrutar, experimentar, transgredir, fez-se presente. Uma Teoria da Jubilação foi sendo construída para justificar novos padrões de comportamento. Emilio chegava aos 50 anos e era brindado por Marie Langer por ter entrado no “círculo dos sábios”; tempo em que o homem entrega-se a colher os frutos plantados na vida e celebrar os resultados. Uma decisão foi tomada: ser sábio na vida. E a sabedoria é a liberdade. A explicação encontrada era a de que, para ser sábio, é importante ser órfão de pais e filhos. Uma teoria com cheiro de “formação reativa”, mas, enfim, abraçada com entusiasmo. O homem jubilado se apropria de sua cidade e a converte em seu jardim. Emílio transforma o desamparo cruel, que uma ditadura militar impõe, em um espaço de invenção e diz: “[...] aprendimos otra vida en los canteros del exilio. Muchos llevaban el dolor de seres cercanos desaparecidos. En mi caso fue ostracismo con ostras y champán. A veces me avergüenzo por mi exilio con la viuda Clicquot.” Esta forma de ser feliz tangencia a crueldade. Lembremos de sua afirmativa, quando da quase segunda expulsão da APA: “[...]más allá de ser transgresor, yo era un sujeto escandaloso.[...]”

Terra escolhida

A Bahia foi a terra escolhida para viver o jubilamento, a cidade que se transformou em jardim. E ele não nega que esta terra lhe trouxe felicidade; uma nova maneira de ver a vida, que não teria conseguido se tivesse permanecido em Buenos Aires.

Emílio não oculta que foi a Bahia que lhe permitiu recuperar o talento, devolver-lhe a criatividade. Para ele, isto não teve preço.

Jubilado das obrigações comuns da vida, vivendo um retorno de uma fome adolescente de experiências. Sem lenço nem documento, esta terra o acolheu.

É neste momento que, acompanhado de Martha Berlin, deu-se o encontro com um jovem grupo, em Salvador, que buscava uma formação psicanalítica.

Durante um período de quatro ou cinco anos, Emilio dedicou-se, juntamente com Martha, a percorrer espaços destinados a pesquisar técnicas de desenvolvimento do potencial humano; laboratórios terapêuticos em Esalen, Amsterdã, Londres. E não se furtaram em transmitir e experimentar o que, então, se constituía como um novo aprendizado, no chamado grupo baiano.

Syra Lopes, Regina Sarmento, Rodrigué, Urania Tourinho, Ladanir Lopes, Roberto Zink, Liane Zink, Aurélio Souza, Beatriz Taber
Volta ao divã

Uma volta à poltrona e ao divã, de alguma maneira, indicou que, de fato, o analista nunca havia sido esquecido. Contudo, a psicanálise já não ocupava o mesmo lugar que antes, porém, havia permanecido como uma tela de fundo, como marcas de um passado que não se apagam, e que podem ressurgir, a qualquer tempo, bastando que situações propícias advenham. Uma renovação marcada de enriquecimentos. E o que é importante: um claro retorno a Freud, materializado na escrita da biografia do fundador da psicanálise.

Uma literatura autoconfessional, voltada para um cultivo ao corpo, ao que se somava o absoluto fascínio pelo mar e praias baianas, havia sempre presente a procura de uma resposta a que ele se referia como sendo a “desvitalização da psicanálise”.

Nada transparecia de um passado que poderíamos chamar de acadêmico. Nenhuma preocupação com a elaboração e o trabalho teórico. É deste período a sua qualificação maior de ser um transgressor e situar-se acima de qualquer julgamento ou reprovação. Um salvo-conduto para a vida.

O Antiyo-Yo e O Paciente das 50.000 Horas

Assim sendo, o exílio, de alguma maneira, propiciou ao “leão” a sua liberdade. El antiyo-yo, em parceria com Marta Berlin e El paciente de las 50.000 horas ambos publicados em 1977, são dois livros decisivos neste momento.

Em 1969, Emilio recebeu um convite para participar de uma edição especial, comemorativa dos 50 anos da Revista Internacional de Psicanálise, publicação oficial da IPA. Juntamente com outros 19 psicanalistas, integraria o volume intitulado Bodas de ouro. O convite o deixou lisonjeado e ele resolveu escrever um texto no qual faria uma avaliação de seu trabalho como analista, a partir da criação de um paciente/personagem, síntese de todos pacientes que havia atendido durante os seus 25 anos como psicanalista. Surge assim o título: O Paciente das 50.000 horas.

Este artigo não foi publicado em Buenos Aires, e, posteriormente, no ano de 1976, é revisitado pelo autor, que não deixa de confessar a difícil tarefa de se reavaliar. O artigo transformou-se, então, em um livro dividido em duas partes. A primeira é resultado dos 25 anos de experiência como analista ortodoxo e, segundo sua própria definição, contém o relato clínico de um paciente em análise didática. A segunda parte, através do relato de uma “cura”, realizada em laboratório social, é a tentativa de teorizar sobre a possibilidade de integração da psicanálise com o Psicodrama, Bioenergética e Gestalt Terapia. Ou seja, uma nova proposta de trabalho.

A primeira parte tem, nitidamente, um tom testamentário, quase uma prestação de contas, uma despedida e um balanço do vivido, como se Emilio, neste texto, estivesse fazendo um depoimento de “final de analista”. E nos chama a atenção a sinceridade através da qual ele se expõe. Contudo, uma sinceridade carregada de amargura.

Ele não tem pudor em afirmar que a psicanálise envelheceu, entretanto, considera uma “afirmativa crucial” a transformação do homem pela psicanálise.

Uma cuidadosa análise deste livro nos leva à compreensão de uma trajetória aparentemente com muitos cortes, mas, em verdade, mantendo sempre o mesmo fio condutor: uma forte inquietação, uma luta apaixonada contra a impostura, uma recusa à adaptação empobrecedora, uma fidelidade ao inconsciente. E o que é mais importante, travestido de transgressor, Emilio esteve sempre movido por uma ética intransigente, que o levou a buscar a verdade, a sinceridade do depoimento, a felicidade, a experiência de vida.

Emilio expressa seu ressentimento, por ter-se submetido a um enquadre convencional e desvitalizante, pela cronificação de um vínculo resultante em um desgaste da palavra, pela minimização da ação e recusa de mudanças. E, o que é mais importante, não se exime destas culpas.

Critica-se por ter perdido a “vocação urticante”, que o acompanhou quando iniciou-se como analista e que o dotava de uma disposição, a mesma de Freud, em revolucionar a ordem estabelecida.

O homem freudiano seria um homem novo; o ato psicanalítico daria uma diferença qualitativa a quem a ele se submetesse. Provocaria uma verdadeira transformação do homem. Contudo, Emilio constata que Freud, ao iniciar a sua luta, sofreu o que denominou de “esplêndido isolamento”, sendo que as gerações vindouras não souberam manter a força do pensamento freudiano, promovendo uma “lamentável expansão” que, inevitavelmente, passou a psicanálise da solidão teórica ao simples lugar comum.

Os três grandes dilemas da psicanálise

Emílio chama a atenção para três grandes dilemas que a psicanálise enfrentava, no final da década de sessenta: questões de procedimento, de metas e de teoria analítica.

O primeiro, procedimento, está ligado às questões da didática, do autorizar-se analista. Interrogações importantes e atuais são levantadas. O procedimento básico, a análise pessoal, é inquestionável. Tornar-se objeto de conhecimento, para em seguida tomar o outro e colocá-lo nesta posição. Na sua época, eram quatro a cinco sessões semanais durante quatro ou cinco anos. Para Emilio, este prolongamento da didática tende a incrementar a burocracia das instituições. Ainda, no que se refere ao procedimento, ele aponta outro ponto que, considera escabroso. “¿Cuál es la subjetividad del candidato en los 5-6-7 años que está en el diván?” Anos de uma relação assimétrica, mantida por um diálogo singular onde o paciente fala mais de oitenta por cento e o analista quase, inevitavelmente, intervém com um “si...pero”.

O enquadramento esconde uma violência e nosso autor questiona se, dentro deste modelo, não se produzem jovens analista adaptados, sem rebelião e criatividade? Ou, ainda, que a rebelião se manifeste exatamente onde não deve, ferindo a regra de abstinência erótica?

Segundo dilema: metas. A ambigüidade da cura analítica, que se confunde com uma terapêutica no estilo médico. O analista não cura e, por isso mesmo, é preferível o nome de analisando ao de paciente. O analista pode cometer uma traição; o paciente procura alívio para sua enfermidade, e o analista persegue algo que tem relação com um suposto encontro com a “verdade”: “[...] el cambio en el otro que involucra mi propio cambio”.

Outro dilema, no que se refere às metas, toca na questão da dimensão experimental. A psicanálise é um método de investigação passível de controle? Esta confusão entre analisar e experimentar, que toca nos anseios cientificistas, confunde a identidade do analista. “El psicoanálisis no es experimentación, es experiencia”.

O terceiro dilema dirige-se à teoria analítica, onde aponta uma divisão, surgida, então, no meio do kleinismo, defendida por George Klein e que, mais tarde, na revisão que Emilio fará do texto, em 1976, considerará um erro e a rejeitará. Uma divisão entre uma teoria clínica e uma teoria metapsicológica, que procura estabelecer uma separação entre conceitos clínicos e conceitos metapsicológicos, propondo-se a construir uma “teoria clínica”. Foi desta época a expressão “teoria da clínica”. O impasse, entre outros, foi colocado quando a distinção entre um conceito clínico e metapsicológico tornou-se difícil de ser realizada. Em verdade, esta oposição à metapsicologia escondia um questionamento de outra ordem. A revisão, feita em 1976, o conduz a retomar os pontos fracos desta colocação de George Klein por ele abraçada.

Revisão

Emilio faz uma revisão de suas idéias, e erros: Para ele, esse erro decorreu do que se refere como sendo efeitos da análise ortodoxa, que produzia uma “desvitalização da psicanálise”. “[...]mi error: estar mirando al psicoanálisis desde el pesimismo en que la práctica alienante del mismo me había sumido. Reflejaba una desvitalización.”

Crítica a “teoria do eu”

Emílio critica a “teoria do eu” dos americanos que, para ele, segue em direção oposta a de Freud, banalizando a noção de libido, reduzindo-a a um “monte de excitação”.

Herdeiro do kleinismo

Herdeiro de kleinismo ele tinha claro o mérito de Melanie Klein em [...] construir una teoria orientada hacia la práctica, abriendo espacios nuevos para la comprensión analítica del niño y del psicótico [...] los analistas kleinianos son, por lo general, más imaginativos y también más comprometidos com la inmediatez del material clínico. [...]Para ellos cada sesión tiene que arrojar su cuota de asociación libre y las interpretaciones pasan a ser hipótesis de trabajo en esa búsqueda” .

A metapsicologia “es un espacio que Freud enmarcó para tener un apoyo fuera de las representaciones verbales de los contenidos psíquicos, un espacio donde la palabra le deja el lugar al cuerpo”.

Dois grandes desvios

Um olhar, sobre a história do movimento psicanalítico, o conduz a afirmar, entre outros, dois grandes desvios: um de Reich, à esquerda de Freud, que postulava “un cuerpo cargado de una energia que en última instancia llega a ser cósmica”; o outro à direita, privilegiando a palavra e fazendo-a legislar sobre a vida, cujo artífice era Lacan.

Como resposta a todas estas inquietações, Emilio escreve o capítulo intitulado La Cura de los Noventa Minutos, onde relata o que ele denominou “de uma cura em um laboratório social”. Dessa experiência, destaca o desconhecimento absoluto da história do paciente e o “débil andamiaje teórico que ofrecen los profesionales de los laboratórios”. Na Cura dos 90 minutos, encontramos o germen do que posteriormente será desenvolvido no LIUS, Laboratório Individual De Uma Única Sessão.

Para Emilio, “a cura dos 90 minutos”, veio como uma resposta ao que ele chamava de: “desvitalização da psicanálise”. Porém, esta forma de trabalhar nunca esteve fora de seu olho crítico. É dele a afirmativa: “El problema del psicoanalista que se sale del diván al adquirir otras técnicas – la vista y el gesto con Moreno, la mano y la postura con Reich – es que hay que pasarlo por la aduana. Suele no acontecer nada. Pero la mala suerte puede llevarnos a que nos toque un inspector epístemólogo y entonces hay que bancarse el exceso de equipaje. Lo que es grave, porque nuestro inspector no lo considerará como un pecadillo sino como un delito. Es un adulterio, nos dirá”.

Biografia de Freud

Se Lacan fez, como resposta a IPA, um retorno a Freud via teoria, Rodrigué o faz via biografia, uma história das biografias recheada com a própria história da psicanálise. Não creio, que seu movimento fosse dirigido a opositores, não mais uma briga com a APA, porém endereçado a um desvio, que ele próprio havia cometido. Era sua fidelidade a Freud, que proclamava, uma homenagem ao pai. Um testemunho do psicanalista que nunca havia deixado de ser. Uma prestação de contas para o “adultério cometido”. O retorno de um viajante aventureiro, cujas andanças pelo mundo não foram suficientes para impedi-lo de regressar ao seu ponto de origem.

Foram seis anos, “os mais ricos e febris” de sua vida, inteiramente dedicados a este trabalho. O computador e a internet foram os grandes aliados de uma empreitada, que para muitos seria impossível. Projeto que carregava um véu de megalomania, e que teve de enfrentar a descrença dos menos ambiciosos.

Jornadas de Cachoeira

Uma relação harmoniosa se estabeleceu, então, com o Colégio de Psicanálise da Bahia, que durante estes seis anos o acompanhou nas suas famosas Jornadas de História da Psicanálise, realizadas em Cachoeira, cidade que é monumento histórico da Bahia, cenário ideal para se falar de história, já que ela própria, denominada A heróica, está recheada de tradição.

Para Emilio, segundo nos revelou em entrevista, Cachoeira virou um mito, uma experiência muito rica, que não teve igual em sua vida. “Era uma soma de fatores, era meio dramático, um charme muito especial. Um momento de sintonia fina”.

A cada ano o grupo do “Colégio” reunia-se em um antigo convento, transformado em Hotel, e que ostentava a beleza de uma igreja barroca ao lado, suas talhas e imaginárias dramáticas. Emilio sentava-se na primeira fila, caderninho na mão, anotando sem cessar o fruto do trabalho de muitos. E, quando, a biografia ficou pronta, cada um de nós encontrava, aqui e ali, uma pequena frase, uma passagem, uma descoberta que fora sua, mas que havia se transformado em dádiva, para aquele que merecia toda a homenagem do grupo. Coincidência ou não, os últimos destes encontros, coincidiram com o término da biografia. Um deles levou como tema: A biografia.

As Jornadas de Cachoeira, momentos inesquecíveis, onde psicanálise, poesia, violão, culinária baiana e música se misturavam, estimulando o que havia de melhor em cada um. Foi um período de boa amizade. Passou, deixou saudades, foi o marco de uma época. As margens do rio Paraguaçu que o digam, com seu silêncio abandonado.

Gigante pela própria natureza

Já nesta época, um novo amor o dominava. Graça fez sua aparição e Emilio mais uma vez se apaixona e encontra a mulher de sua vida. Foi um encontro de olhares: “Levanto a vista e topo com dois enormes olhos verdes, cheios de luzes, marcados por uma espessa cabeleira afro. “[...] O fogo magno encadeou-me ....” .

Este amor transformou-se em livro: Gigante pela própria natureza. Foi amor intenso, que o fez penetrar nos obscuros caminhos do candomblé. E que deixou a interrogação sobre o quanto lhe teria tocado a religião. Emilio considera este o seu melhor livro.

Freud

A biografia de Freud teve início quando o Gigante se conclui. Para Emilio, escrever esta biografia teve o efeito de liquidar sua transferência com Freud. Em entrevista, afirmou que, após este grande esforço, Freud deixou de interessá-lo, e que, como psicanalista, observou muitas mudanças na forma de atuar, e que as sintetizaria com sendo uma grande liberdade conquistada.

É provável, que a crítica dirigida ao movimento Plataforma, de não ter verdadeiramente conseguido imprimir uma modificação significativa na sua atuação como psicanalista; estes anos de heterodoxia e de intenso convívio com o “pai da psicanálise” tenham, finalmente, produzido esta liberação tão ansiada.

O casamento com Graça se desfez, o período de vida em Itapuã se conclui, e com ele outro livro: El libro de las separaciones. Emilio regressa a Ondina, bairro e praia que o sitiou em sua primeira década na Bahia, e que foi homenageado com um livro: La lección de Ondina, Manual (Psicoanalítico) de Sabiduria. Contudo, Ondina já não é mais a mesma, é outra. Habita um apart-hotel, frente ao mar, companheiro inseparável em sua vida baiana. Inclui na sua rotina uma academia de ginástica, deixa-se cuidar por uma equipe a quem dedicará o livro deste momento: El libro de los encuentros.

Velhice

Aqui, inicia-se um novo capítulo que merece como entrada uma citação encontrada no Gigante pela própria natureza:

“A literatura senil deve refletir a verdade polimorfa do inverno da vida. Por ela desfilarão o velho velhote, o velho velhusco, o velho revelho, caduco e o velho cinza dos grandes tédios.”

Tudo leva a crer que Emilio, nesta citação, não se inclui, não antecipou que uma nova velhice poderia ser desenhada sem tédio, e que o inverno da vida poderia conter tons dourados. Emilio mergulha, pois, no que vai chamar de “os anos mais felizes de sua vida”. E se interroga: o “que é felicidade, este tema tão pouco tratado pela psicanálise?” “Felicidade, esa emoción con alma de mercurio[...] Para sentirse feliz hay que acreditar un mañana mejor[...] hay que ser feliz, como dice Remy de Gourmont, aunque no sea más que por orgullo. En cierta forma uno se decreta feliz, como uma manifestación de “la rage de vivre”.

E, tudo indica, este amanhã melhor se fez realidade, e ele soube decretar-se feliz. Soube cumprir o que havia vaticinado: temos que re-inventar o velho.

A procura da felicidade sempre o acompanhou, em La lección de Ondina havia unido felicidade e saúde e desenvolvido a idéia de celebração. Aos 80 anos torna-se, assim, mestre na capacidade de autocelebrar-se, e descobre que a sexualidade pode ser experimentada, vivida e construída de uma outra maneira: “sexo añejo decantado en nobles toneles de roble”

Emilio sem se dizer teórico é um grande téorico, não apenas da psicanálise, mas sobretudo da vida. Mestre de si mesmo, discípulo de si próprio, eis a sua maior lição.

Título cidadão soteropolitano. Rodrigué, Vereador Castelo Branco, Fernando Peres



Querida Bahia
Ésta es la carta de un  forastero que encontró
una tierra a la medida de sus sueños y de una
historia que se fue haciendo en común: a la medida
de un acaso, también de una familiaridad. Te
escribo desde el miedo que tengo de perderte, de
perder tu cielo, tu gente, los coqueros, tus buenas
vibraciones. Nada puede amenazar más mi sabiduría.
Puedo pederte Bahia y de pronto comprendo que en el límite
de un gran amor está la muerte.
Hoy no te voy a hablar como psicoanalista, ni como escritor,
ni siquiera como el hombre notable
que soy. Te hablaré como enamorado, única llave
que abre tus magníficas puertas. 
E. R.

***

Urania Tourinho Peres

Texto extraído do livro: Emilio Rodrigué, Caçador de Labirintos – Salvador – Bahia, Editora Corrupio, 2004.

Congresso O Século da Psicanálise – Encontro Internacional – Salvador – Ba 1995.
 
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"Sou um analista da quarta ou da quinta geração. Abraham foi meu avô. Conheci um Jones um tanto irônico, polêmico na discussão de trabalhos de Bion e Balint. Fui vizinho de Mrs. Klein por mais de dois anos. Participei de seminários com Rickman. Glover e Anna Freud, e mais tarde troquei cartas com Winnicott. Tomei chá com Alix Strachey, servido por Mrs. Lindon, a bibliotecária do Instituto Britânico de Psicanálise. Do outro lado do Atlântico, na Costa da ego psychology, trabalhei, por mais de três anos na mesma clínica que David Rappaport e Erik Erikson. Possuo uma poderosa transferência com o passado, mas sou, ao mesmo tempo, um franco-atirador, um arqueiro free-lance, alguém que foi um jovem analista do tempo velho e que agora é um velho analista do tempo novo. Tenho um miradouro panorâmico do percurso do movimento psicanalítico. Permaneci um longo período na Associação Psicanalítica Internacional – IPA para logo ser agente de câmbio com esse furacão manso que foi o movimento Plataforma. Sou o analista das 100.000 horas."

(Rodrigué 1995)